17/02/2011

Elogio do Φaraó


Uma das figuras mais fascinantes e que mais me pessoalmente seduzem da narrativa bíblica é o Pharaóh egípcio. Quem é ele, o que o motiva? Em vários outros pontos —o incrédulo Tomé, ou a segunda das Grandes Tentações, em que é proposto ao Christo que se lance do pináculo do Templo para que, demonstrando o poder do Milagre, instantaneamente traga os povos para junto de si— em vários outros pontos parece que a única coisa que realmente falta para trazer a vitória final de Israel, quase que a única coisa que seria necessária para trazer à terra a "Jerusalém celeste" seria que Deus se manifestasse abertamente, que logo todos os povos da terra acorreriam à vera crença.

Ora que faz o Pharaóh? Essencialmente o oposto. O Pharaóh é uma espécie de paragono da anti-fé: que diriam vocês se, à ordem de alguém, o rio se ensanguescece, caísse fogo do céu, e o vosso corpo apodrecesse de peste? Posso facilmente afirmar que a grande maioria se não mesmo a totalidade de nós não tardaria a reconhecer a superioridade da divindade revelada: se os milagres são filosoficamente impossíveis, nada melhor que testemunhar um para comprovar a verdade de quem pode fazer o impossível. 

Mas não o Pharaóh, e eu amo-o por isso: é impossível saber, mas não é improvável que a última pessoa a recusar a partida dos Hebreus tenha sido ele mesmo, que já a restante totalidade do povo egípcio crêsse no poder do Senhor manifesto nas nove anteriores pragas. Ele possui o tipo de fé que apenas o mais poderoso crente pode ter: é o perfeito crente religioso, o perfeito ateu. A vera fé não se esvai com meras contingências como factos comprováveis, o verdadeiro crente não se convence do oposto daquilo que acredita unicamente porque a realidade o contradiz completamente (cf o comentário de Ulrich no Homem Sem Qualidades, «"Que farias, para dar sentido ao mundo?" "Abolir a realidade."»).

Assim como o verdadeiro religioso não se convence do oposto da sua fé com uma tabela científica (as «provas da existência de Deus» são, e as sábias, como a de Santo Anselmo, assumem sê-lo, preaching to the converted), assim também o verdadeiro ateísta não se convence do oposto da sua fé (porque sim, o ateísmo é, epistomológica ou cientìficamente falando, uma fé; a única posição 'lógica' dum ponto de vista estritamente racional é um aborrecido agnosticismo) unicamente porque o Deus Vivo se lhe revela.

Que tipo de força pessoal, que convicção profunda não terá sido necessária para isto, para conceder uma base na qual assentar o poder desta vontade que cria mundos e os destrói? Porque ela Nunca quebra. A décima praga, a morte dos primogénitos. Não. Há um golpe humano, demasiado humano. Eu não creio no Deus dos hebreus, mas meu filho jaz perante meus ungidos braços caído: Partam! abandonem-me à minha dor. Mas não há uma convicção, não há um reconhecimento do poder de Deus: mesmo que a décima primeira praga fosse o engolir na terra de toda a Mênfis, não consentiria o Pharaóh se não fosse tocado pessoalmente: é o facto de lhe morrer o filho que o faz mexer. Deus, Moisés fazem jogo sujo: não conseguem nem conseguirão abalar a fé do pharaóh, portanto remendam o problema desviando-se de lhe mudar a fé e concentrando-se em atingi-lo enquanto um ser humano que também ele ama. 

Mas isso não é quebrá-lo. A fé frágil (a única passível de alguma vez ser quebrada) não sobrevive ao mais pequeno golpe, como um fasce cortado: lembremo-nos de Kierkegaard: se alguma vez creste para ti mesmo que algo está perdido, para ti tudo está para sempre perdido. Não é a fé do Pharaóh que quebra, tanto que o luto faz-se, como todo o luto em tempos de guerra, celeremente: não tardará a recompor-se, e a mandar as suas quadrigas trucidar aqueles escravos fugitivos; e aqui abandonamo-lo, porque sempre será a nossa fé frágil.

O pharaóh é o representante último daquilo que a Weil chama o ateísmo purificador, o ateísmo que purgou a sua crença em Deus por completo até chegar ao ponto de purgar o próprio Deus da sua crença. A convicção absoluta que a fé exige ao humano pode apenas nascer da esfera do transcendental, mesmo que seja um transcendental vazio: o ateísmo que se leve a sério é necessariamente religioso. A diferença é que o ateísmo, depois do confronto com o Christo nado-morto, recusa-se ainda assim a dar-se às contingências do real e a prescindir da sua fé, até chegar mesmo ao ponto de retirar a força para combater as Nove Pragas ao acreditar no vazio do nada, no desaparecimento de Deus,



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